quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A Metidinha de Vilas do Atlântico

- Então meu filho, vamos recapitular. Você não pertence àquele mundo. Hoje é seu primeiro dia de aula, você precisa se impor, chegar plantado. Seus colegas vão te humilhar, te denegrir, fazer chacota por você morar em Itinga, mas você precisa ter orgulho das suas raízes!! Vai com Deus, e força!
Foi com esse conselho apocalíptico que me despedi da minha mãe, aos 9 anos de idade, prestes a entrar na van do transporte escolar que me levaria ao meu mais novo colégio - o Mendel Villas. Era muita pretensão minha, de fato. Toda minha vida havia estudado num colégio de bairro, de pequeno porte, pertinho de casa, localizado numa rua de barro e com iluminação precária, uma das únicas escolas particulares em Itinga, e que, como era de se esperar, acabou indo à falência por inadimplência dos alunos. Meu pai não viu outra solução - fez um esforço, economizou aqui e ali, e me botou no tal Colégio Mendel, que ficava lá em Vilas do Atlântico, para aqueles que não sabem, o bairro mais nobre da cidade de Lauro de Freitas. Um lugar onde tudo é bonito, as casas, o asfalto, as árvores, a praia, e onde a pobreza só chega travestida através das empregadas domésticas.
Pois bem, após o trauma provocado pelas palavras de minha mãe, lá estava eu, mais tenso que peru em véspera de Natal, a caminho do fatídico primeiro dia de aula nesse universo de riqueza. Chegando lá, minha primeira surpresa - o piso era de granito. Não que eu soubesse o que era granito, mas minha mãe enfatizou tanto isso pras amigas no telefone, ("Menina, você não sabe, a escola chiquerésima que eu matriculei meu filho, o piso é de granito, pode? De gra-ni-to!") que quando eu vi o fiquei até com pena de pisar naquele negócio.
Na sala de aula, dois ar condicionados. Não era nem um, eram dois! Na minha antiga escola, se bobear, não tinha nem ventilador! Imagine, estudar num lugar com ar-condicionado! Tava bom demais esse negócio.
Finalmente, a professora chegou, se apresentou (Nancy, com Y mesmo, e com a pronúncia Néinci), e nos passous as devidas informações sobre o ano letivo, e à medida que ela ia falando, meus olhos brilhavam com tanta novidade. Laboratório de informática com um computador para cada dois alunos!! Na escola anterior a gente usava o computador da Diretora, e tipo assim, eram uns 15 pirralhos se estapeando pra ver quem pegaria o mouse pra desenhar no Paint! Gincanas! Natação! Um auditório com Cinema! Piso de granito! Ar-condicionados!
As demais crianças, obviamente, não pareceram nem um pouco empolgadas. Quando acabou o blá blá blá da Tia (sim, lá no Mendel se chama professora de Tia. Demorei pra me acostumar, por que na antiga escola era tudo Pró: Pró Roquelina, Pró Fátima e Pró Avaneide. Mas enfim, se o vocativo é Tia, quem era eu pra discutir?
Enfim, tudo corria bem, eu tava achando ótimo aquela vida de luxo educacional, até que minutos depois a Tia Nancy percebeu que tinha esquecido de perguntar uma coisa importantíssima.
- Geeente, esqueci de perguntar uma coisa importantíssima!! Como é que eu chego assim e saio falando sem nem perguntar o nomezinho de vocês? Comecem falando aí, como foram de fériaaaas???
Férias? Minhas férias tinham sido horríveis, como todo ano. Meu pai me arrastava pra fazenda de meu tio,e eu ficava lá andando de cavalo pra um lado e pro outro, colocando boi em curral e vendo televisão 14 polegadas. Um saco, um saco! E quando eu achava que não poderia ficar pior, ela complementou:
- Vamos gente! Por que vocês estão tão tímidos? Quem aqui foi pra Disney nessas férias?
- EEEEEEEEUUUUUUUU!!!!! - respondeu a sala em uníssono. Obviamente, nem todos foram à Disney, mas quem foi deve ter gritado muito alto, e quando juntou isso com minha invejinha, eu coloquei na cabeça que eu era o único no recinto que não tinha visto Mickey Mouse no mês anterior. A síndrome de pobreza começou a bater. Bem que minha mãe tinha avisado.
- Ah, que legal, que legal! Gostaram de lá? Andaram muito em montanha russa?
- SIIIIIIIIIIIIMMMMM!!!! - de novo a maldita resposta em uníssono. Montanha russa? A única montanha-russa que eu conhecia era aquela lata velha do Golden Park. Aliás, minto, do Universal Park. Montanha Russa de Looping então era lenda! Mas eu não liguei e continuei tentando levar a vida, torcendo pra que a professora não me perguntasse se eu andei muito de jumento lá na roça.
Aos poucos, novas informações das férias dos coleguinhas do Mendel começaram a aparecer. Verdade, nem todos foram à Disney. Uma garota foi na Europa, a outra foi no Rio de Janeiro (e ainda pegou um autógrafo de Priscila da TV Colosso), o outro foi em São Paulo, e por aí vai. Eu ia me controlando pra não fazer pergunta idiota do tipo "Como é viajar de avião?", mas se eu não tenho filtro aos 22 anos, imagine como era aos 9. Um desastre.
E aí veio ela. Mariana, nunca esqueci o nome da individua. A típica filhinha de papai. 9 anos de idade e já tinha aquela cara nojenta de mini-Suzana Vieira. Imagine como deve estar hoje em dia, provavelmente cursando alguma faculdade de Direito e andando de salto alto pra lá e pra cá com um Vade Mecum no braço. Deus é mais.
Continuando, lá estava Mariana sentadinha no canto dela, olhando um álbum de fotos que ela estrategicamente revelou dias antes só pra levar pro colégio e mostrar pros colegas das maravilhas de sua viagem. Quando eu vi aquela criatura solitária, pensei "Essa não deve ser como as crianças que minha mãe me disse. Até tem cara de nojenta, mas quem sabe ela não esteja procurando um amigo no 1º dia de aula?".
Ledo engano, meus amigos. Mariana era calculista, fria, ardilosa. Seu plano maquiavélico consistia em sentar no cantinho, olhar mil vezes o mesmo álbum, e atrair pobres mortais como eu, que nunca tinham viajado pra fora da Bahia. E deu certo.
- Oi, meu nome é Iuri, e o seu?
- Mariana... - em outras palavras, "suma daqui, seu lixo, verme indigente!"
- É seu primeiro ano aqui no Mendel?
- Não...
- Ah, você estudou aqui ano passado?
- Aham....
- Eu gostei daqui, parece ser legal. Tem piso de granito né?
- Piso de quê?
- Granito. Sei lá, esse que é meio cinza. Minha mãe falou que é chique.
- Ah, tá...
- E essas fotos aí? São das suas férias? Posso ver?
- Pode, né...
Comecei a passar o álbum. Neve, neve, mais neve. Meu Deus, haja neve. E Mariana em quase todas as fotos, com sua cara de nojenta. Mariana aprendendo a esquiar. Mariana e seu bonequinho de gelo. Mariana e o chocolate quente. "E agora, o que eu falo? Ah, ela tá achando que eu sou burro, e isso por que nem sabe que eu sou de Itinga! Vai saber o que ela vai dizer se souber qual meu bairro! Mas rapaz, de geografia, eu entendo, já tinha ouvido falar de um lugar com muita neve, que brasileiro costumava ir. Ia largar o doce, queria ver se ela não ia passar a me respeitar!
- Pô, bonitas as fotos! Isso aqui foi naquela cidade na Argentina, né, Bariloche?
Aí Mariana se retou. Tomou o álbum das minhas mãos, saiu pisando forte, virou pra trás e disse:
- Eu só vou pra Bariloche no meio do ano, não tem neve lá em Janeiro, não. Essas fotos eu tirei na Carolina do Norte, seu BURRO!
Aí meu mundo caiu. Cheguei em casa, e nem quis olhar na cara de minha mãe, só pra não ter que ouvir um "Eu não te disse que lá em Villas todo mundo é rico?". Fui correndo no meu guarda-roupa, peguei um Atlas e saí folheando desesperadamente. Minha mãe espantou-se com a cena, se aproximou e perguntou:
- Meu filho, o que houve na aula? Aconteceu alguma coisa? Você contou pra alguém que era de Itinga?
- Me deixa minha mãe, me deixa! Eu vou descobrir aqui em que fim de mundo fica essa tal de Carolina do Norte e amanhã vou esfregar na cara daquela idiota. Ah, se vou.

3 comentários:

  1. Parabéns Iuri! Ficou mto legal!
    Fernando Ventin

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  2. Ficou bom, Ure! Me avise quando digitar os outros!

    Melina.
    :)

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  3. gostei:) estava procurando transporte escolar pro meu filhinho e eu de itinga pra vilas do atlântico e tropecei no seu blog, mto legal!!

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