sexta-feira, 20 de julho de 2012

Vida Louca Vida


Existem filmes que tocam profundamente na nossa alma. Filmes que, mesmo não sendo tão bons, dialogam diretamente conosco, e que por meio de personagens tão próximos de nós, transformam nossa visão de mundo, reproduzindo na tela nossos próprios desejos, princípios, ideias e experiências pessoais. Curtindo a Vida Adoidado, O Clube dos Cinco, Esqueceram de Mim, Albergue Espanhol, Cinema Paradiso, Sociedade dos Poetas Mortos, Edward Mãos-de-Tesoura, Super 8 e Meia Noite em Paris são alguns dos títulos que assisti em diferentes fases da vida, e que rapidamente vêm à minha mente quando penso em filmes que marcaram a minha história.
Na Estrada (On the Road), do diretor brasileiro Walter Salles, certamente constará nessa lista no futuro. Um filme cheio de falhas, uma atriz (Kirsten Stewart, a Miss Crepúsculo)  que por si só consegue estragar quase todas as cenas em que aparece – a não ser talvez nos seus gemidos bem interpretados numa das inúmeras sequências de sexo – e um roteiro relativamente superficial. Mas uma jornada tão sedutora, interessante e tão espetacularmente dirigida que emociona e envolve o espectador até o último minuto, numa trama que narra as desventuras de dois jovens amigos – Dean e Sal – numa viagem pelo interior dos Estados Unidos no período do pós-guerra. Não há uma mensagem moralista de auto-descoberta, não existe qualquer lógica nas atitudes dos protagonistas, e nem mesmo um clímax ou um desfecho que encerre a narrativa. Trata-se de um relato histórico – uma obra baseada no livro auto-biográfico de Jack Kerouac – um retrato de uma época da sociedade norte-americana, e um marco no movimento contracultural que teve início na década de 50 e que encontrou seu apogeu nos anos 60, no feminismo, nos hippies, na ideologia black power e em todas as circunstâncias que caracterizam os denominados anos rebeldes.
É o prazer pelo puro prazer. A vida como uma dádiva e um fim em si mesma. O presente como se realmente não houvesse amanhã. Dean e Sal pegam o carro, uma quantia ínfima de dinheiro, alguns cigarros de maconha, uísque, e Deus sabe lá quais outras drogas e atravessam todo o território norte-americano, de Nova York, na Costa Leste, a San Francisco, na Costa Oeste, passando pelo Texas, Colorado, Louisiana, Virgínia e Nova Jersey e embarcam numa viagem de jazz, sexo (uma putaria desenfreada, diga-se de passagem), e poesia.
O longa não se preocupa em descobrir as motivações dos protagonistas. Num momento estamos vendo uma paisagem coberta de neve e um carro cruzando a estrada em alta velocidade, e num outro os personagens estão enchendo a cara num bordel de beira de estrada no interior do México. Mas em meio a toda essa aventura desregrada e inconsequente, é a forte amizade – quase platônica – entre Dean e Sal que se revela talvez como o único elemento que se sobressai e garante sentido, coerência e paixão à trama. O primeiro (Garret Hedlund, em atuação impecável) é a alma da película, a mais perfeita representação da irresponsabilidade juvenil levada ao extremo – alcoólatra, usuário de drogas, ninfomaníaco, egoísta, egocêntrico, e criminoso –, um personagem tão cativante quando odioso, capaz de demonstrar uma sensibilidade quase angelical numa cena e em outra abandonar a esposa e o filho recém-nascido para fugir com a amante. O segundo (Sam Riley, igualmente brilhante) é a voz e os olhos do filme. Aquele que completa Dean e que o segue sem pestanejar e sem questionar seus atos, fascinado pelo seu espírito desapegado e arredio, e pronto para apoiar o amigo em todos os seus momentos de loucura.
Não é uma obra que agrada aos corações mais católicos e ao público classe média feijão-com-arroz. Na saída da sessão, prestei atenção aos comentários de algumas pessoas, e tudo o que notei foram observações negativas, de que o filme seria uma apologia ao uso de drogas, à delinquência, ao homossexualismo e que a história não teria pé nem cabeça. Que na prática, a vida de Dean e Sal teria sido uma sucessão de pecados, erros e tropeços que não levaram os personagens a lugar algum. Não compreenderam a ideia central do filme – e certamente nunca compreenderão, perdidos em suas regras, seus conceitos de cinema fast-food e suas soluções pragmáticas de todos os problemas. Na Estrada é uma obra de desprendimento, de epifania artística e espiritual, de celebração à vida e toda a sua plenitude. Uma exaltação à mais genuína das amizades e à efemeridade do amanhã. E uma crítica à hipocrisia e a todo o sistema de valores sociais do modo de vida norte-americano.
Um filme para ficar na memória daqueles que não se contentam com a monotonia, daqueles que sonham em embarcar num carro, num ônibus, navio ou avião e nunca mais voltar, daqueles que amam o sentimento de amar mais do que o objeto do amor, daqueles que riem e que choram e dizem tudo como se fosse a última vez, e daqueles que acima de tudo têm consciência de que a vida, ainda que com todos os seus planos, estratégias e etapas seguidas passo a passo, pode ser mais incerta do que a estrada de Dean e Sal.

"Vida louca Vida/ Vida breve/ Já que eu não posso te levar/ Quero que você me leve" (Cazuza)

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