Existem filmes que tocam
profundamente na nossa alma. Filmes que, mesmo não sendo tão bons, dialogam
diretamente conosco, e que por meio de personagens tão próximos de nós,
transformam nossa visão de mundo, reproduzindo na tela nossos próprios desejos,
princípios, ideias e experiências pessoais. Curtindo
a Vida Adoidado, O Clube dos Cinco, Esqueceram
de Mim, Albergue Espanhol, Cinema Paradiso, Sociedade dos Poetas Mortos, Edward Mãos-de-Tesoura, Super 8 e Meia Noite em Paris são alguns dos títulos
que assisti em diferentes fases da vida, e que rapidamente vêm à minha mente
quando penso em filmes que marcaram a minha história.
Na Estrada (On the Road), do diretor brasileiro Walter Salles,
certamente constará nessa lista no futuro. Um filme cheio de falhas, uma atriz
(Kirsten Stewart, a Miss Crepúsculo) que
por si só consegue estragar quase todas as cenas em que aparece – a não ser
talvez nos seus gemidos bem interpretados numa das inúmeras sequências de sexo
– e um roteiro relativamente superficial. Mas uma jornada tão sedutora, interessante
e tão espetacularmente dirigida que emociona e envolve o espectador até o
último minuto, numa trama que narra as desventuras de dois jovens amigos – Dean
e Sal – numa viagem pelo interior dos Estados Unidos no período do pós-guerra.
Não há uma mensagem moralista de auto-descoberta, não existe qualquer lógica
nas atitudes dos protagonistas, e nem mesmo um clímax ou um desfecho que
encerre a narrativa. Trata-se de um relato histórico – uma obra baseada no
livro auto-biográfico de Jack Kerouac – um retrato de uma época da sociedade
norte-americana, e um marco no movimento contracultural que teve início na
década de 50 e que encontrou seu apogeu nos anos 60, no feminismo, nos hippies,
na ideologia black power e em todas as circunstâncias que caracterizam os
denominados anos rebeldes.
É o prazer pelo puro prazer. A
vida como uma dádiva e um fim em si mesma. O presente como se realmente não
houvesse amanhã. Dean e Sal pegam o carro, uma quantia ínfima de dinheiro,
alguns cigarros de maconha, uísque, e Deus sabe lá quais outras drogas e
atravessam todo o território norte-americano, de Nova York, na Costa Leste, a
San Francisco, na Costa Oeste, passando pelo Texas, Colorado, Louisiana,
Virgínia e Nova Jersey e embarcam numa viagem de jazz, sexo (uma putaria
desenfreada, diga-se de passagem), e poesia.
O longa não se preocupa em
descobrir as motivações dos protagonistas. Num momento estamos vendo uma
paisagem coberta de neve e um carro cruzando a estrada em alta velocidade, e
num outro os personagens estão enchendo a cara num bordel de beira de estrada
no interior do México. Mas em meio a toda essa aventura desregrada e
inconsequente, é a forte amizade – quase platônica – entre Dean e Sal que se
revela talvez como o único elemento que se sobressai e garante sentido,
coerência e paixão à trama. O primeiro (Garret Hedlund, em atuação impecável) é
a alma da película, a mais perfeita representação da irresponsabilidade juvenil
levada ao extremo – alcoólatra, usuário de drogas, ninfomaníaco, egoísta,
egocêntrico, e criminoso –, um personagem tão cativante quando odioso, capaz de
demonstrar uma sensibilidade quase angelical numa cena e em outra abandonar a
esposa e o filho recém-nascido para fugir com a amante. O segundo (Sam Riley,
igualmente brilhante) é a voz e os olhos do filme. Aquele que completa Dean e
que o segue sem pestanejar e sem questionar seus atos, fascinado pelo seu
espírito desapegado e arredio, e pronto para apoiar o amigo em todos os seus
momentos de loucura.
Não é uma obra que agrada aos
corações mais católicos e ao público classe média feijão-com-arroz. Na saída da
sessão, prestei atenção aos comentários de algumas pessoas, e tudo o que notei
foram observações negativas, de que o filme seria uma apologia ao uso de
drogas, à delinquência, ao homossexualismo e que a história não teria pé nem
cabeça. Que na prática, a vida de Dean e Sal teria sido uma sucessão de
pecados, erros e tropeços que não levaram os personagens a lugar algum. Não
compreenderam a ideia central do filme – e certamente nunca compreenderão,
perdidos em suas regras, seus conceitos de cinema fast-food e suas soluções
pragmáticas de todos os problemas. Na
Estrada é uma obra de desprendimento, de epifania artística e espiritual,
de celebração à vida e toda a sua plenitude. Uma exaltação à mais genuína das
amizades e à efemeridade do amanhã. E uma crítica à hipocrisia e a todo o
sistema de valores sociais do modo de vida norte-americano.
Um filme para ficar na memória
daqueles que não se contentam com a monotonia, daqueles que sonham em embarcar
num carro, num ônibus, navio ou avião e nunca mais voltar, daqueles que amam o
sentimento de amar mais do que o objeto do amor, daqueles que riem e que choram
e dizem tudo como se fosse a última vez, e daqueles que acima de tudo têm
consciência de que a vida, ainda que com todos os seus planos, estratégias e
etapas seguidas passo a passo, pode ser mais incerta do que a estrada de Dean e
Sal.
"Vida louca Vida/ Vida breve/ Já que eu não posso te levar/ Quero que você me leve" (Cazuza)
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